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domingo, 13 de julho de 2014

Menu Contos: C-I-R-C-U-S

C-I-R-C-U-S

Deve haver alguma punição para quem mata sua própria família. Seja pela justiça dos homens, ou pior, que seja pela justiça de entes etéreos, aqueles que não vimos, mas crendo ou não, nos momentos menos esperados eles surgem, com seu poder sobre a vida e a morte. Estava por descobrir que esta é a pior de todas as justiças.
Naquela manhã, o dia alvoreceu corriqueiro com a voz de minha madrasta dando ordens como de costume. Meu pai bebia sua cerveja enquanto decidia ir ou não ao trabalho, e pouco se importava com o alarde daquela saliente mulher. Minha avó, coitada tremia pela velhice assistindo a tudo sem nada poder fazer. Sempre impotente, até mesmo quando a vaca de minha madrasta a maltratava com bofetes.
Esta é a resenha concisa de minha vida.
É da natureza e do instinto humano a busca pela felicidade. Eu estava muito longe dela, e a cada dia ela parecia-me ainda mais distante, que nem trespassando as mais altas montanhas a encontraria. Foi no exato momento em que o líquido negro quente e amargo queimou minha garganta que resolvi ser proprietário de meu destino.
Fui até a gaveta de uma pia velha e desbeiçada e abri a gaveta, onde baratas passeavam sobre os talheres. Arredei-as a fim de encontrar o que procurava. Uma faca de lâmina larga e que servia para carnear os porcos no sítio. Ouvi o ruído abafado do chuveiro, sabia que era o momento da vadia banhar-se e ir à cidade, o que fazia todos os dias. Não há como puni-la por trair meu pai, que desdenhava aquele belo corpo nu, o qual, muitos homens da cidade deleitavam-se a um bom preço. Coxas torneadas, e seios empinados. Não era a primeira vez que a observava no banho, que via ela se tocar, regozijar-se solitária... Mas aquela era a ultima vez, era especial, e por isso não me contive, e minhas mãos se acenderam dentro das calças, dando-me prazer no exato momento em que ela gozava sozinha.

Arfando, invadi o banheiro. Ela tomada por surpresa ainda tentou recriminar-me. “Safado” bradou... Mas antes que pudesse continuar com seus xingamentos desferi o golpe mortal no pescoço. Um único golpe, e o talho lhe rasgou de uma extremidade a outra. O líquido vermelho, viscoso e quente jorrava como uma fonte grega. E o corpo nu tombou.
Bêbado, meu pai sequer ouvira os gritos de sua mulher. Olhava qualquer programa de esportes, e tentava mandar-me sair da frente do televisor. Não queria matá-lo pelas costas. Ele precisava ver quem acabaria com sua infame vida. A primeira facada foi por colocar aquela mulher estranha em nossas vidas. As outras setenta e umas estocadas foi para cada bofete que ele deu em minha mãe, e principalmente por tê-la matado, algo que apenas a polícia e o juiz local desconheciam.
É complicado definir o sabor da morte em suas mãos. É abstrato. Diferente. Surreal. Apenas é fincada em nossas almas a certeza de que não somos mais o mesmo. Como se uma nova criatura nascesse para o mundo. Foi assim que me senti no primeiro lampejo de lucidez ao ver tantas porções da cor vermelha inundando a nossa casa.
Olhei para minha avó em sua cadeira de rodas, e sem condição de falar. Sua boca sem dentes entreaberta esboçava um sorriso irônico como se aplaudisse meus atos. Ela concordava com tudo que fizera. Fui ao quarto, joguei alguns pertences numa mochila camuflada, e depois no quarto do falecido pai tomei sua espingarda. Sabia que poderia ter problemas pelo caminho. Tiras não gostam de assassinos.
Antes tentei despedir-me de minha avó. Seus olhos circundados pelas rugas da idade estavam marejados. Suplicantes. Por mais que doesse entendia sua súplica. Como deixá-la abandonada com dois defuntos? Como levá-la junto numa fuga perigosa? Eu sabia o que fazer...
Jamais usaria a faca com minha avó. Ela sempre foi meu porto seguro desde a morte de mamãe, e não seria justo fazê-la sofrer. O estampido potente, grosso ecoou pelo vale. O tiro foi certeiro. Na testa entre seus dois olhos. Ela não sofreu. Seu pedido fora aceito, por mais que tenha sido doloroso mirar e atirar contra a última pessoa que amava no mundo.
O velho Opala, com motor de seis canecos rosnou bravo, e começou a comer asfalto. Tinha de aproveitar a vantagem até que descobrissem os corpos. Creio que isto me permitiu cruzar as fronteiras do estado. Um dia triste. A estrada ajudava a esquecê-lo.Foi pensando em espairecer os pensamentos de um dia tão conturbado, em que a madrugada estava prestes a bater á porta, que as luzes coloridas do circo erguido numa estrada no meio do nada me chamaram a atenção. Talvez eu precisasse rir um pouco.
O pedal do freio fez o carro gritar em pleno asfalto. Guinei á esquerda, e senti o solavanco da estrada irregular e o levantar de poeira da estradinha de chão. Reduzi as marchas para admirar a paisagem. Era estranho um circo naquele lugar ermo. Mas devia ser bom, tinham muitos carros no estacionamento.
Passei pelo pórtico onde uma cabeça de palhaço sorria aos visitantes de forma irônica. “Circu’s” era a única palavra escrita no pórtico. Entrei. Pus o carro ao lado de outros e decidi caminhar. Para meu azar deixei a espingarda sobre o banco do carona.
A primeira sensação foi de espanto ao perceber que as máquinas estavam solitárias. A montanha russa ao lado do lonão rodava sem passageiros, e não havia filas na barraca de pipoca. Tão pouco o pipoqueiro. “Deve ser um espetáculo fenomenal”. Pensei. E dirigi-me ao lonão.
O silêncio pairava pelo ar, onde apenas o tamborilar de grilos ressonava. O silêncio estava começando a me assustar. Até mais que o próprio deserto que habitava os arredores do circo. O instinto de salvação repelia-me para outra direção. Mas a curiosidade fazia-me seguir em frente.
Estava prestes a conhecer a tal justiça etérea.
Abri lentamente a cortina de borracha e o picadeiro sorriu aos meus olhos. Um trágico e tenebroso picadeiro. Vi de longe as figuras estranhas devorando como feras selvagens as carnes dos mortos espalhados por toda a lona do picadeiro ás arquibancadas. Mais que vomitar, o anseio foi em fugir. Girei o corpo e eles estavam lá.
Palhaços são sombrios por natureza. Pior ainda quando estão mortos. Suas roupas coloridas tomadas por barro e rasgões que expunham suas chagas. Cabeleiras fajutas e fétidas banhadas em óleo e graxa. E faces assustadoras em que a maquiagem berrante em simbiose se mesclava as carnes pútridas donde habitam vermes de todos os tipos. Havia um semicírculo deles. Um contingente a bloquear minha fuga. O pânico tomou conta de mim.
Não sei se Deus ou o Diabo, mas estava convicto que alguma entidade etérea os enviara até ali por um único motivo: Julgarem-me! Assim como provavelmente o fizeram com os outros. O bando de palhaços morto-vivos veio em minha direção com seus braços esticados e mãos sedentas por pegarem-me. Girei o corpo novamente e corri para o coração do picadeiro. Corri apenas alguns metros e tropecei num corpo disforme. Tombei.
A sombra densa dos palhaços zumbis caiu sobre mim, e logo não conseguia me movimentar. Meu castigo afinal chegara, e tamanha era a dor daqueles dentes podres rasgando minhas carnes que urrava como um lobo ao ser violentado por um urso... Minha visão aos poucos foi enegrecendo e os sons de suas mordidas se esvaindo... Tive tempo de ainda ouvir um espectro próximo ordenar:

 — Basta. Já se divertiram muito por hoje. Está na hora de mudarmos de endereço. Há muitos condenados ao leste.
E então somente o silencio. 

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